quarta-feira, 14 de agosto de 2013

A paz precisa de sangue.

Naruna Costa recitando DA PAZ de Marcelino Freire

Trecho do Filme Curta Saraus




"Eu não sou da paz. 
Não sou mesmo não.
Não sou.
Paz é coisa de rico. 
Não visto camiseta nenhuma, não, senhor. 
Não solto pomba nenhuma, não, senhor. 
Não venha me pedir para eu chorar mais. 
Secou. 
A paz é uma desgraça.
Uma desgraça. 
Carregar essa rosa. Boba na mão. Nada a ver. Vou não. 
Não vou fazer essa cara. Chapada. Não vou rezar. 
Eu é que não vou tomar a praça. Nessa multidão. 
A paz não resolve nada. 
A paz marcha. Para onde marcha? 
A paz fica bonita na televisão.
Viu aquela atriz do trio elétrico?
Aquele ator? 
Se quiser, vá você, diacho.
Eu é que não vou. Atirar uma lágrima. 
A paz é muito organizada. Muito certinha, tadinha.
A paz tem hora marcada. 
Vem governador participar. E prefeito. E senador. E até jogador. 
Vou não. 
Não vou. 
A paz é perda de tempo.
E o tanto que eu tenho para fazer hoje. Arroz e feijão. Arroz e feijão. 
Sem contar a costura. 
Meu juízo não está bom. 
A paz me deixa doente.
Sabe como é? Sem disposição. 
Sinto muito. Sinto. 
A paz não vai estragar o meu domingo. 
A paz nunca vem aqui, no pedaço. 
Reparou? Fica lá.
Está vendo? 
Um bando de gente. Dentro dessa fila demente.
A paz é muito chata. 
A paz é uma bosta. 
Não fede nem cheira. 
A paz parece brincadeira. 
A paz é coisa de criança. 
Tá uma coisa que eu não gosto: esperança. 
A paz é muito falsa. 
A paz é uma senhora. Que nunca olhou na minha cara. 
Sabe a madame? 
A paz não mora no meu tanque. 
A paz é muito branca. 
A paz é pálida. 
A paz precisa de sangue. 
Já disse.
Não quero. Não vou a nenhum passeio. A nenhuma passeata.
Não saio. Não movo uma palha. Nem morta.
Nem que a paz venha aqui bater na minha porta.
Eu não abro. 
Eu não deixo entrar.
A paz está proibida. 
A paz só aparece nessas horas. 
Em que a guerra é transferida. 
Viu? 
Agora é que a cidade se organiza. 
Para salvar a pele de quem? 
A minha é que não é. 
Rezar nesse inferno eu já rezo. Amém. 
Eu é que não vou acompanhar andor de ninguém.
Não vou. Não vou. 
Sabe de uma coisa: eles que se lasquem.
É.
Eles que caminhem. A tarde inteira. Porque eu já cansei. 
Eu não tenho mais paciência. Não tenho. 
A paz parece que está rindo de mim. Reparou? 
Com todos os terços. 
Com todos os nervos. 
Dentes estridentes. Reparou? 
Vou fazer mais o quê, hein? 
Hein? 
Quem vai ressuscitar meu filho, o Joaquim? 
Eu é que não vou levar a foto do menino para ficar exibindo lá embaixo. 
Carregando na avenida a minha ferida. 
Marchar não vou, ao lado de polícia. 
Toda vez que vejo a foto do Joaquim, dá um nó. 
Uma saudade. Sabe? 
Uma dor na vista. 
Um cisco no peito. 
Sem fim. 
Ai que dor! 
Dor. Dor. Dor. 
A minha vontade é sair gritando. Urrando. Soltando tiro. Juro. Meu Jesus! 
Matando todo mundo. É. Todo mundo.
Eu matava, pode ter certeza.
A paz é que é culpada. Sabe, não sabe? 
A paz é que não deixa."

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