domingo, 18 de setembro de 2011

Estaria caindo o tabu sobre a questão das drogas na França?

Fernando Henrique Cardoso vai gostar demais dessa notícia.



A esquerda quer relançar o debate tabu da descriminalização da maconha na França


Le Monde
Cécile Prieur


O deputado Daniel Vaillant (PS) defende uma “legalização controlada” e a venda licenciada. A legislação francesa, muito restritiva, não tem impedido um consumo recorde. O ministro do Interior, Claude Guéant, denuncia uma perigosa “ingenuidade”

Estaria caindo o tabu sobre a questão das drogas na França? Depois de Stéphane Gatignon (Europe Ecologie-Verdes), prefeito de Sevran (departamento de Seine-Saint-Denis), uma cidade tomada pelo narcotráfico, é a vez dos deputados socialistas, liderados por Daniel Vaillant, ex-ministro do Interior, de quererem “acabar com a hipocrisia” em matéria de drogas.


Ao constatar que a França dispõe de uma das legislações mais repressivas e proibicionistas da Europa, ao mesmo tempo em que apresenta níveis dos mais altos de consumo de entorpecentes, o grupo de estudos Socialista, Radical, Cidadão (SRC) da Assembleia Nacional resolveu propor “a legalização controlada da maconha”. Em um país onde qualquer apelo a uma descriminalização das drogas é considerado irresponsável, a proposta parece bastante iconoclasta: no entanto, ela reivindica um “olhar novo e corajoso”, uma vez que os deputados do Partido Socialista afirmam que atualmente “o status quo que é a permissividade”.

Após um período em que o uso de maconha foi pouco punido – nos anos 1990, chegava a se falar em uma descriminalização de fato - , a França acentuou a repressão ao consumo nos últimos anos. A cada ano, 90 mil pessoas são detidas por uso de maconha, ou seja, oito vezes mais do que há vinte anos (cerca de 12 mil ao ano). Esse grande crescimento resultou em um aumento no número de alternativas aos processos (advertências, tratamento compulsório, liberação com aconselhamento de saúde, estágio de conscientização para os perigos dos entorpecentes). Contudo, 20% das pessoas detidas são alvo de processos penais, uma proporção crescente. Os usuários de maconha também passaram a ser visados nas estradas, com a criação, em 2003, de um delito específico para os motoristas que tenham vestígios de entorpecentes no sangue.

No entanto, esse endurecimento das penas, encorajado pela maioria desde 2002, não afetou nem o nível do tráfico, nem o do consumo. Todos os estudos convergem para a conclusão de que não existe nenhuma correlação entre o nível do uso e o da repressão: a lei de 31 de dezembro de 1970, que pune com um ano de prisão e uma multa de 3.750 euros (cerca de R$ 8.512) o consumo de entorpecentes, sem distinção de produtos, é desafiada a cada ano por 4 milhões de consumidores de maconha, dos quais quase um terço é de usuários regulares.  Pior ainda, a repressão ao tráfico, que é muito severa na França, não parece ter nenhuma influência sobre o mercado das drogas: apesar dos esforços do poder público e da polícia, os supermercados das drogas, verdadeira economia paralela de subsistência, prosperam de forma escancarada nas escadarias dos conjuntos habitacionais das periferias.

Apesar dessa constatação de fracasso, é quase inexistente o debate sobre as drogas na França. Muito dividido do ponto de vista ideológico, ele opõe a direita, que se apega firmemente ao símbolo de uma sociedade sem drogas, a uma esquerda refugiada no silêncio, paralisada pelos processos por irresponsabilidade que ela teme sofrer. Somente Nicolas Sarkozy, fiel à sua política de contrariedade, havia considerado em 2003, quando era ministro do Interior, transformar o uso em contravenção, a fim de tornar eficaz a proibição. O ex-premiê Jean-Pierre Raffarin desistiu disso, no final: na época o governo argumentou que qualquer reforma da lei de 1970 poderia ser interpretada como “o sinal de uma fraca periculosidade dos entorpecentes e produzir um novo aumento no consumo”. Desde então, o debate permaneceu em ponto morto, uma vez que todos os candidatos da campanha presidencial de 2007 se mantiveram prudentemente afastados do tema, com exceção dos Verdes.

Enquanto a França olhava para outras direções, fora dali o debate prosperou. Vários países europeus, bem como 13 Estados americanos, descriminalizaram o uso da maconha nos últimos anos. Por força da tradição liberal, a proibição é regularmente questionada pela mídia anglo-saxônica – a revista “The Economist” tem defendido uma mudança nas políticas antidrogas.

A constatação do fracasso da guerra às drogas, que produz milhares de mortes a cada ano entre os traficantes sem abalar o tráfico, leva à consideração de outros caminhos: no dia 2 de junho, a Comissão Mundial sobre a Política das Drogas (Global Commission on Drug Policy), composta, entre outros, por ex-presidentes brasileiros, colombianos e mexicanos e pelo ex-secretário-geral da ONU Kofi Annan, preconizava a descriminalização do consumo de drogas e a legalização controlada da maconha.

A ideia de legalização controlada chegou até a França sustentada por Stéphane Gatignon e Daniel Vaillant. Preocupados com a ascensão do tráfico de entorpecentes nos bairros pobres, os dois parlamentares se apoiam na mesma constatação de fracasso da guerra contra os traficantes para defender a necessidade de uma mudança de paradigma. Segundo eles, a descriminalização, que consiste em deixar de processar os usuários de maconha, não bastará: é preciso também regulamentar a produção e a distribuição de haxixe a fim de esgotar os traficantes.

A proposta, que levanta outras questões – e quanto ao mercado das outras drogas? – tem pouca chance de obter um consenso. Em nome do governo, o ministro do Interior, Claude Guéant, e a secretária de Estado para a Saúde, Nora Berra, se posicionaram contra. À esquerda, François Hollande e Ségolène Royal, candidatos socialistas às primárias, não quiseram endossar essa opinião, ao mesmo tempo em que reconhecem que a “questão merece reflexão, pois sabemos que a criminalização não consegue resolver o problema.”

Todos sabem que um debate como esse não traz votos: efeito ou não da acentuação da proibição nos últimos anos, em 2008 70% dos franceses eram contra “uma possível abertura” da legislação sobre a maconha, contra 65% em 2002. Apesar da extensão do mal-estar social revelado pelo nível de consumo de entorpecentes na França, será tentador para os dirigentes políticos evitarem o debate por mais uma vez em 2012.
Tradução: Lana Lim



fonte UOL

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